Beidou: espaço e posicionamento
Texto publicado no jornal Hoje Macau, 16 de Março de 2007.
José Carlos Matias
Nas últimas semanas, o programa espacial chinês voltou à agenda dos meios de comunicação devido à realização do teste anti-satélite que destrui um antigo satélite meteorológico no espaço. Um outro desenvolvimento que recebeu menos atenção reflecte um outro passo dado pela China no âmbito da tecnologia espacial: foi lançado o quarto satélite do sistema de navegação Beidou, depois de quatro anos de inactividade do programa de navegação por satélite da China. Começa assim a desenhar-se um sistema alternativo ao norte-americano GPS e mesmo ao sistema europeu Galileo, do qual a China faz parte enquanto parceiro externo preferencial. À medida que vai emergindo dos escombros do mundo pós-Guerra Fria uma ordem internacional caracterizada por um multipolarismo económico, no espaço desenha-se uma lógica multipolar em que os principais actores são os Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia.O Beidou (Ursa Menor em chinês) é, comparativamente ao GPS ou ao Galileo, um sistema limitado, uma vez que tendo apenas quatro satélites no espaço em órbita geoestacionária cobrindo apenas pouco mais que o território da China e as zonas adjacentes.
O “salto em frente” do Beidou
Contudo são cada vez mais óbvios os sinais de que o Beidou deverá evoluir para um sistema de navegação e posicionamento por satélite, rival dos já existentes GPS dos Estados Unidos, ao russo GLONASS e ao projecto europeu Galileo, que está a dar os primeiros passos. Aliás, essa intenção é explícita no “Livro Branco das Actividades Espaciais da China”, documento em que é referido como um dos objectivos para a primeira década do século XXI o estabelecimento de um sistema independente de navegação e posicionamento, uma tecnologia que permite através da triangulação de sinais entre um aparelho receptor, uma base terrestre e, no mínimo a combinação de sinais de três satélites obter com precisão – dependendo do serviço que se está autorizado a usar – o posicionamento de uma pessoa ou objecto.
Sendo uma tecnologia usada cada vez mais para fins civis, os sistemas de navegação e posicionamento têm potencialidades militares imensas, como de resto foi visível na última invasão norte-americana do Iraque. De resto, o único sistema em funcionamento, o norte-americano GPS foi criado nos anos 1970 com propósitos militares e ainda hoje está na dependência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Quanto ao Galileo, dirigido pela Agência Espacial Europeia (ESA) e pelo Directorate-General de Transportes e Energia da Comissão Europeia, trata-se de um projecto apresentado como meramente civil mas que tem obviamente implicações importantes ao nível da modernização e reforço da Política Europeia de Segurança e Defesa. O Galileo já tem um de uma série de 26 satélites em órbita e espera-se que m 2010 tenha o sistema a funcionar em pleno.
As relações EUA-UE-China
Em 2003, a China e a União Europeia assinaram um acordo de cooperação no projecto Galileo, segundo o qual Pequim contribui com 200 milhões de euros, tornando-se assim no principal parceiro externo de Bruxelas neste sistema alternativo ao GPS. Na altura, os EUA tentaram impedir a entrada da China no Galileo, depois de antes terem procurado junto dos estados-membros mais “transatlanticistas” abortar o nascimento do sistema europeu de navegação por satélite. Para Washington a perspectiva do Exército Popular de Libertação ter acesso a uma tecnologia sensível com esta potencialidade militar suscita fortes dores de cabeça, em especial às sensibilidades que advogam a tese da “Ameaça Chna”, que habitam em certos círculos próximos do Pentágono. É o caso de Hans Binnendijk: “É preciso que haja um acordo transatlântico sobre a forma como a Europa se vai comportar se os EUA se vissem forçados a um conflito com a China. Por exemplo, a China investiu fortemente no Galileo, o sistema europeu de navegação por satélite. A China vai utilizar essa tecnologia para direccionar as armas de precisão. Esta possibilidade deve ser negada à China em tempos de guerra com os Estados Unidos ou os seus aliados norte-americanos”. Esta visão alude à perspectiva de uma guerra no estreito, um cenário improvável, que ainda ocupa as mentes de vários analistas nos EUA. A UE já garantiu que o código de precisão máxima, o PRS Code, apenas vai ser concedido a entidades militares e de segurança dos estados-membros da UE e às Forças de Reacção Rápida, no contexto do desenvolvimento da Política Externa de Segurança Comum e da Política Europeia de Segurança e Defesa. Além do mais, em 2004 Washington e Bruxelas assinaram um acordo de interoperabilidade entre o GPS e Galileo de modo a evitar a sobreposição de sinais entre os dois sistemas. Contudo, a desconfiança dos norte-americanos mantém-se. David Lague, no International Herald Tribune, salienta o fundamento dos receios de Washington: “O acesso da China ao sistema Galileo é encarado por alguns analistas como um retrocesso sério nos esforços dos Estados Unidos de limitar o acesso da China a tecnologia militar avançada. Os críticos da participação chinesa no projecto Galileo dizem que a União Europeia está, na verdade, a ajudar à modernização militar da China apesar da existência do embargo à venda de armas”.
Galileo: quo vadis?
Para os mais atentos, parece claro que um dos objectivos da participação da China no Galileo tem a ver com o acesso à transferência de tecnologia. O objectivo já tinha sido anunciado no Livro Branco das Actividades Espaciais Chinesas: a construção de um sistema independente chinês. Os passos estão a ser dados mais rapidamente do que alguns pensavam. Quando falados em sistemas de navegação e posicionamento não nos referimos apenas às potencialidades militares, mas cada vez mais às aplicações civis. Um dos objectivos da UE nesta cooperação com a China era ter acesso ao mercado emergente e de massas chinês ao nível das telecomunicações e transportes. A Xinhua referia há quatro meses que o Beidou poderá oferecer um sistema com margem de erro de 10 metros que estaria disponível a todos os chineses “gratuitamente”, ou seja apenas mediante a aquisição do aparelho receptor. Ora, como Paul Marks alerta na revista New Scientist: “Se isto se vier a concretizar, poderá ser um grande problema para o consórcio Galileo que esperava recuperar o investimento de 2.5 mil milhões de euros vendendo receptores e subscrições comerciais na China”. O investimento da China em indústrias de ponta e sectores que representam activos estratégicos na aeronáutica e no espaço não se fica por aqui. Esta semana, a Xinhua revelou que projecto para a construção de aviões de longo curso rival da Boeing e da conturbada europeia Airbus começará a dar os primeiros passo em 2010. Começa a desenhar-se assim uma relação triangular de forças em termos geoeconómicos, especialmente no que diz respeito a indústrias estratégicas que envolvem aplicações militares e civis - aeronáutica e projecção de poder no espaço. A Rússia, o “quarto elemento” nesata dinâmica, emerge cada vez mais como potência energética, ao mesmo tempo que se prepara para finalmente colocar em funcionamento o GLONASS, o sistema russo de navegação e posicionamento por satélite.
José Carlos Matias
Nas últimas semanas, o programa espacial chinês voltou à agenda dos meios de comunicação devido à realização do teste anti-satélite que destrui um antigo satélite meteorológico no espaço. Um outro desenvolvimento que recebeu menos atenção reflecte um outro passo dado pela China no âmbito da tecnologia espacial: foi lançado o quarto satélite do sistema de navegação Beidou, depois de quatro anos de inactividade do programa de navegação por satélite da China. Começa assim a desenhar-se um sistema alternativo ao norte-americano GPS e mesmo ao sistema europeu Galileo, do qual a China faz parte enquanto parceiro externo preferencial. À medida que vai emergindo dos escombros do mundo pós-Guerra Fria uma ordem internacional caracterizada por um multipolarismo económico, no espaço desenha-se uma lógica multipolar em que os principais actores são os Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia.O Beidou (Ursa Menor em chinês) é, comparativamente ao GPS ou ao Galileo, um sistema limitado, uma vez que tendo apenas quatro satélites no espaço em órbita geoestacionária cobrindo apenas pouco mais que o território da China e as zonas adjacentes.
O “salto em frente” do Beidou
Contudo são cada vez mais óbvios os sinais de que o Beidou deverá evoluir para um sistema de navegação e posicionamento por satélite, rival dos já existentes GPS dos Estados Unidos, ao russo GLONASS e ao projecto europeu Galileo, que está a dar os primeiros passos. Aliás, essa intenção é explícita no “Livro Branco das Actividades Espaciais da China”, documento em que é referido como um dos objectivos para a primeira década do século XXI o estabelecimento de um sistema independente de navegação e posicionamento, uma tecnologia que permite através da triangulação de sinais entre um aparelho receptor, uma base terrestre e, no mínimo a combinação de sinais de três satélites obter com precisão – dependendo do serviço que se está autorizado a usar – o posicionamento de uma pessoa ou objecto.
Sendo uma tecnologia usada cada vez mais para fins civis, os sistemas de navegação e posicionamento têm potencialidades militares imensas, como de resto foi visível na última invasão norte-americana do Iraque. De resto, o único sistema em funcionamento, o norte-americano GPS foi criado nos anos 1970 com propósitos militares e ainda hoje está na dependência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Quanto ao Galileo, dirigido pela Agência Espacial Europeia (ESA) e pelo Directorate-General de Transportes e Energia da Comissão Europeia, trata-se de um projecto apresentado como meramente civil mas que tem obviamente implicações importantes ao nível da modernização e reforço da Política Europeia de Segurança e Defesa. O Galileo já tem um de uma série de 26 satélites em órbita e espera-se que m 2010 tenha o sistema a funcionar em pleno.
As relações EUA-UE-China
Em 2003, a China e a União Europeia assinaram um acordo de cooperação no projecto Galileo, segundo o qual Pequim contribui com 200 milhões de euros, tornando-se assim no principal parceiro externo de Bruxelas neste sistema alternativo ao GPS. Na altura, os EUA tentaram impedir a entrada da China no Galileo, depois de antes terem procurado junto dos estados-membros mais “transatlanticistas” abortar o nascimento do sistema europeu de navegação por satélite. Para Washington a perspectiva do Exército Popular de Libertação ter acesso a uma tecnologia sensível com esta potencialidade militar suscita fortes dores de cabeça, em especial às sensibilidades que advogam a tese da “Ameaça Chna”, que habitam em certos círculos próximos do Pentágono. É o caso de Hans Binnendijk: “É preciso que haja um acordo transatlântico sobre a forma como a Europa se vai comportar se os EUA se vissem forçados a um conflito com a China. Por exemplo, a China investiu fortemente no Galileo, o sistema europeu de navegação por satélite. A China vai utilizar essa tecnologia para direccionar as armas de precisão. Esta possibilidade deve ser negada à China em tempos de guerra com os Estados Unidos ou os seus aliados norte-americanos”. Esta visão alude à perspectiva de uma guerra no estreito, um cenário improvável, que ainda ocupa as mentes de vários analistas nos EUA. A UE já garantiu que o código de precisão máxima, o PRS Code, apenas vai ser concedido a entidades militares e de segurança dos estados-membros da UE e às Forças de Reacção Rápida, no contexto do desenvolvimento da Política Externa de Segurança Comum e da Política Europeia de Segurança e Defesa. Além do mais, em 2004 Washington e Bruxelas assinaram um acordo de interoperabilidade entre o GPS e Galileo de modo a evitar a sobreposição de sinais entre os dois sistemas. Contudo, a desconfiança dos norte-americanos mantém-se. David Lague, no International Herald Tribune, salienta o fundamento dos receios de Washington: “O acesso da China ao sistema Galileo é encarado por alguns analistas como um retrocesso sério nos esforços dos Estados Unidos de limitar o acesso da China a tecnologia militar avançada. Os críticos da participação chinesa no projecto Galileo dizem que a União Europeia está, na verdade, a ajudar à modernização militar da China apesar da existência do embargo à venda de armas”.
Galileo: quo vadis?
Para os mais atentos, parece claro que um dos objectivos da participação da China no Galileo tem a ver com o acesso à transferência de tecnologia. O objectivo já tinha sido anunciado no Livro Branco das Actividades Espaciais Chinesas: a construção de um sistema independente chinês. Os passos estão a ser dados mais rapidamente do que alguns pensavam. Quando falados em sistemas de navegação e posicionamento não nos referimos apenas às potencialidades militares, mas cada vez mais às aplicações civis. Um dos objectivos da UE nesta cooperação com a China era ter acesso ao mercado emergente e de massas chinês ao nível das telecomunicações e transportes. A Xinhua referia há quatro meses que o Beidou poderá oferecer um sistema com margem de erro de 10 metros que estaria disponível a todos os chineses “gratuitamente”, ou seja apenas mediante a aquisição do aparelho receptor. Ora, como Paul Marks alerta na revista New Scientist: “Se isto se vier a concretizar, poderá ser um grande problema para o consórcio Galileo que esperava recuperar o investimento de 2.5 mil milhões de euros vendendo receptores e subscrições comerciais na China”. O investimento da China em indústrias de ponta e sectores que representam activos estratégicos na aeronáutica e no espaço não se fica por aqui. Esta semana, a Xinhua revelou que projecto para a construção de aviões de longo curso rival da Boeing e da conturbada europeia Airbus começará a dar os primeiros passo em 2010. Começa a desenhar-se assim uma relação triangular de forças em termos geoeconómicos, especialmente no que diz respeito a indústrias estratégicas que envolvem aplicações militares e civis - aeronáutica e projecção de poder no espaço. A Rússia, o “quarto elemento” nesata dinâmica, emerge cada vez mais como potência energética, ao mesmo tempo que se prepara para finalmente colocar em funcionamento o GLONASS, o sistema russo de navegação e posicionamento por satélite.
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